A regularidade dos fenómenos irregulares

Fenómenos irregulares

Há diversos fenómenos que ocorrem de forma temporalmente irregular. Por exemplo, a chuva, a entrada de clientes num estabelecimento, a passagem de carros numa estrada, o aparecimento de supernovas numa galáxia, o decaimento de átomos numa amostra radioativa, a queda de pingos de chuva numa folha de árvore, os tremores de terra, os golos num jogo de futebol, etc, etc, etc.

A probabilidade de ocorrência \(P(t_1,t_2)\) de um destes fenómenos irregulares num dado intervalo de tempo \([t_1,t_2]\) é uma função contínua que satisfaz as seguintes propriedades

  1. Está compreendida entre 0 e 1 \[ 0\leq P(t_1,t_2)\lt 1,\quad\forall t_1, t_2 \]
  2. A probabilidade de ocorrência num intervalo com duração nula é zero: \[ P(t,t)=0,\quad \forall t;\]
  3. Fixado o instante inicial \(t_1\), \(P(t_1,t_2)\) é uma função crescente da duração do intervalo considerado: \[ P(t_1,t_2)\leq P(t_1,t_3),\quad \forall t_1\lt t_2\lt t_3 \]
Em geral, a ocorrência de um fenómeno irregular depende das condições do sistema em que se dá. Por exemplo, os deslizamentos de neve numa encosta dos Alpes são mais prováveis no inverno que no verão, mais prováveis nos dias imediatamente a seguir a um nevão intenso e menos prováveis nos dias a seguir a deslizamentos anteriores. Mas há fenómenos para os quais a probabilidade de ocorrência num dado intervalo de tempo só depende da duração desse intervalo e é independente de quaisquer outras condições. A esses fenómenos chamamos completamente aleatórios, e é desses fenómenos que nos vamos ocupar nesta nota.

Note-se que podemos tratar qualquer fenómeno irregular como um fenómeno completamente aleatório, desde que limitemos o estudo a um intervalo de tempo suficientemente curto para que não se notem as dependências explícitas da probabilidade de ocorrência, \(P(t_1,t_2)\), dos instantes de início e fim do intervalo de tempo. Por exemplo, a chegada de clientes a um café aumenta ao final da tarde e reduz-se ao final da noite. Se estudarmos a chegada de clientes a um café em intervalos de tempo tão curtos que não se notem essas flutuações, poderemos, no nosso estudo, considerar esse fenómeno como completamente aleatório. Outro exemplo: a frequência da ocorrência de decaimentos atómicos numa amostra radioativa vai-se reduzindo à medida que o tempo passa, porque com esses decaimentos vai diminuindo o número de núcleos radioativos na amostra; mas, se considerarmos um intervalo de tempo curto comparado com o tempo de meia vida da espécie radioativa na amostra, podemos desprezar esse efeito e considerar constante a probabilidade de decaimento na amostra, ou seja, considerar a ocorrência de decaimentos uma variável completamente aleatória.

Fenómenos completamente aleatórios

Os fenómenos acompletamente aleatórios são aqueles cuja probabilidade de ocorrência num intervalo de tempo só depende da duração desse intervalo, isto é \[ P(t_1,t_2)=P(t_2-t_1),\quad \forall t_2\gt t_1. \] Logo, \(P(t_2-t_1)/(t_2-t_1)\) depende igualmente apenas da duração \(t_2-t_1\) e consequentemente o limite \[ \lambda = \lim_{t_2-t_1\rightarrow0} \frac{P(t_2-t_1)}{t_2-t_1}=\frac{dP}{dt} \] é constante. Este limite representa a probabilidade de ocorrência do fenómeno por unidade de tempo e tem o nome de taxa de ocorrência do fenómeno.
A probabilidade de ocorrência do fenómeno num intervalo de tempo infinitesimal é, então, diretamente proporcional à duração do intervalo de tempo, \(dP=\lambda dt\). Esta proporcionalidade não é válida para intervalos de tempo com duração finita. Se o fosse, seria sempre possível considerar um intervalo de tempo com duração suficiente para tornar a probabilidade de ocorrência maior que um (ou que um milhão), o que só pode ser um disparate. Para perceber melhor esta questão, consideremos um intervalo de tempo com duração infinitesimal \(dt\), dividido em dois sub-intervalos com durações \(dt_1\) e \(dt_2\) não necessariamente iguais, tais que \(dt=dt_1+dt_2\). Seja \(dP\) a probabilidade de ocorrência no intervalo composto, e \(dP_1\) e \(dP_2\) as probabilidades de ocorrência nos respetivos sub-intervalos. A probabilidade de o fenómeno ocorrer no intervalo de duração \(dt\) é a de ocorrer no primeiro sub-intervalo ou no segundo. Assim, devemos ter \[ dP=dP_1+ dP_2 - dP_{12}, \] onde \(dP_{12}\) representa a probabilidade de ocorrência do fenómeno no primeiro e no segundo sub-intervalos. Como a probabilidade de ocorrência é independente de quaisquer condições do sistema, as ocorrências do fenómeno nos dois sub-intervalos são acontecimentos independentes e, assim, \(dP_{12}=dP_1dP_2\). Tratando-se de intervalos de tempo infinitesimais, esta probabilidade de ocorrência em ambos os sub-intervalos é um infinitésimo de segunda ordem que pode ser desprezado; mas com intervalos de tempo finitos esta aproximação não é válida, e por isso a proporcionalidade já não se verifica.

Chama-se processo de Poisson a um processo que gera as ocorrências de um fenómeno completamente aleatório.

Probabilidade de \(k\) ocorrências num intervalo com duração \(t\)

Para calcularmos a probabilidade de 0, 1, 2, ..., \(k\), ... ocorrências de um fenómeno completamente aleatório num intervalo de tempo com duração \(t\), dividamos o dito intervalo num número \(N\) de subitervalos iguais, com duração \(\delta t=t/N\) suficientemente pequenos para ser razoável desprezar a possibilidade de duas ou mais ocorrências do fenómeno em cada um e aproximar a probabilidade de ocorrência, em cada subintervalo, por \(\delta P=\lambda\delta t\), onde \(\lambda\) é a taxa de ocorrência do fenómeno. O número total de ocorrências nos \(N\) é então uma variável aleatória aproximadamente binomial com parâmetros \(N\) e \(p=\lambda\delta t=\lambda t/N\). Esta identificação só fica exata no limite \(N\rightarrow\infty\), em que \(p=\lambda t/N\rightarrow0\). Mas, nesse limite, a distribuição binomial tende para uma distribuição de Poisson com parâmetro \(pN=\lambda\ t\). As probabilidades dos vários resultados, nesse limite, são as da distribuição de Poisson, ou seja, \begin{equation}\label{eq:pofk} P_k(t) = \frac{1}{k!}(\lambda t)^k e^{-\lambda t}. \end{equation}

Parêntesis: outras maneiras de esfolar este coelho para \(k=0\)

Há (pelo menos) duas outras maneiras de obter a probabilidade \(P_k(t)\) para o caso \(k=0\), a que vamos chamar a via elegante e a via da força bruta, que descrevemos já de seguida.

A probabilidade de não ocorrência pela via elegante

A probabilidade de não ocorrência do fenómeno num intervalo de tempo \(t+dt\) é, uma vez que se trata de uma função contínua, \[ P_0(t+dt)=P_0(t) + \frac{dP_0}{dt}dt \] Por outro lado, para que o fenómeno não ocorra no intervalo de tempo com duração \(t+dt\), é necessário que não ocorra no intervalo de duração \(t\) (com probabilidade \(P_0(t)\)) nem no intervalo infinitesimal seguinte, com duração \(dt\) (com probabilidade \(1-\lambda dt\)). Como estes dois acontecimentos são independentes a probabilidade da sua conjugação é o produto, isto é, \[ P_0(t+dt)=P_0(t)(1-\lambda dt) \] Comparando estas duas igualdades obtemos uma equação diferencial para \(P_0(t)\), \[ \frac{dP_0}{dt}=-\lambda P_0(t), \] cuja solução é \[ P_0(t)=e^{-\lambda t}. \] (A constante de integração é fixada pela condição \(P_0(0)=1\)). Esta igualdade corresponde à da eq. (\ref{eq:pofk}) para o caso \(k=0\).

A probabilidade de não ocorrência pela via da força bruta

Podemos calcular a probabilidade de não ocorrência do fenómeno num intervalo temporal com duração \(t\), subdividindo o intervalo dado em \(N\) subintervalos pequenos com duração \(\delta t=t/N\), suficientemente pequenos para que a probabilidade de ocorrência em cada um se possa tomar aproximadamente igual a \(\lambda \delta t\), ou seja, que a probabilidade de não ocrrência se possa considerar \(1-\lambda \delta t\). Para que o fenómeno não se dê no intervalo de duração \(t\), não se pode dar em nenhum dos subintervalos que formam a partição, e como as ocorrências do fenómeno em diferentes intervalos de tempo são acontecimentos independentes, podemos escrever \[ P_0(t)\simeq(1-\lambda\delta t)^N=\left(1-\frac{\lambda t}{N}\right)^N. \] A aproximação só se torna exata no limite em que \(\delta t\rightarrow0\), ou seja, \(N\rightarrow\infty\). Então \[ P_0(t)=\lim_{N\rightarrow\infty}\left(1-\frac{\lambda t}{N}\right)^N =e^{-\lambda t}, \] recuperando-se o resultado da eq. (\ref{eq:pofk}) para o caso \(k=0\).

Probabilidade da duração de um hiato e duração média sem ocorrências

Podemos usar o resultado obtido para a probabilidade de não ocorrência para calcular a função densidade de probabilidade da duração de um intervalo sem qualquer ocorrências do fenómeno. A probabilidade de que um hiato sem ocorrências tenha uma duração compreendida entre \(t\) e \(t+dt\) é a de que não ocorra o fenómeno no intervalo \([0,t]\) e ocorra no intervalo com duração infinitesimal \(dt\) imediatamente seguinte, ou seja \[ dp_\otimes(t)=P_0(t)\lambda dt. \] A densidade de probabilidade de um hiato sem ocorrências é então \begin{equation} f_\otimes(t)=\lambda e^{-\lambda t}. \end{equation} Note-se que esta densidade de probabilidade está já devidamente normalizada, \(\int_0^\infty f_\otimes(t)dt=1\).

A duração média do intervalo de tempo até se dar a próxima ocorrência pode agora ser facilmente calculada: \[ \langle t \rangle=\int_0^\infty tf_\otimes(t) dt=\frac{1}\lambda. \] Como a probabilidade de ocorrência do fenómeno num dado intervalo de tempo não depende explicitamente do tempo, mas apenas da duração o intervalo, a densidade de probabilidade \(f_\otimes(t)\) depende também apenas da duração \(t\). Assim, o resultado que obtivemos é a duração média de um hiato, mas é igualmente a duração média do intervalo de tempo até se dar uma ocorrência, que tenha acabado de se dar uma ocorrência, quer ela não dê há já muito tempo.

Um teste: os veículos que passam à porta da UBI dirigidos ao centro

[falta escrever]

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