O tamanho da Lua

Num eclipse lunar parcial, vemos a sombra da Terra projetada na superfície da Lua. A fotografia que abre este post foi tirada no eclipse de 16 de Julho de 2019. Uma pesquisa no google (ou noutro motor de busca qualquer) permite o acesso a centenas de outras imagens semelhantes. Estas imagens têm (pelo menos) dois aspetos interessantes:
  1. A forma da sombra da Terra projetada na superfície da Lua é circular em todas as imagens, nunca são visíveis bicos ou excentricidades. Isto mostra que a Terra é aproximadamente esférica, uma vez que só as esferas projetam sombras circulares em qualquer direção.
  2. O raio de curvatura da linha de sombra tem valores muito aproximados em todas as imagens. De uma amostra de quatro, obtive o valor \begin{equation} \frac{R_\text{sombra}}{R_\text{Lua}}=2,\!50\pm0,\!12. \end{equation} (Nesta análise usei o software GeoGebra para ajustar circunferências ao disco lunar e à linha de sombra. No final do post mostrarei como isso se faz.)
Podemos estimar a razão entre os raios da Terra e da Lua a partir do valor da razão da eq. (1). Vou apresentar dois métodos, o primeiro mais grosseiro que o segundo. Ambos os métodos pressupõem que o Sol está muito distante da Terra, hipótese apoiada por muito boas razões, que serão exploradas noutro(s) post(s). No primeiro método, o mais inexato dos dois, imagina-se o Sol infinitamente longe, desprezando-se o seu diâmetro angular; no segundo, supõe-se apenas que o Sol está muito mais longe do que a Lua, tão mais longe que se pode desprezar o diâmetro angular da Terra vista do Sol face ao diâmetro angular da Lua vista da Terra.
Os valores tabelados dos raios da Terra e da Lua são, respetivamente, 6371 km e 1736 km. Assim, o valor atualmente aceite do quociente entre estes dois raios é 3,6710.

Método 1, Sol infinitamente distante

Supondo o Sol infinitamente longe, os raios de luz que nos iluminam (e que, ao serem bloqueados pela Terra, geram a sua sombra) incidem na Terra paralelos uns aos outros. Então a sombra da Terra é um cilindro com raio igual ao da Terra e, portanto, a razão da eq. (1) é a razão entre o raio da Terra e da Lua. Não está muito longe do valor de referência de 3,6710, mas...

Método 2, Sol afastado mas nem tanto!

Repare no esquema em baixo, que mostra o Sol (à esquerda) a Terra (T) e a Lua. (Atenção que não está desenhado à escala: tomando o tamanho do Sol como referência, a Terra e a Lua deveriam estar desenhadas muito menores e muito mais longe do Sol; mas a proporção entre o raio solar e o raio orbital da Lua é mais ou menos a apresentada.)


Os pontos S, T, F, por um lado, e T, P, F, por outro, definem dois triângulos. Assim, deve ter-se \begin{align*} \varphi+\delta+(\pi-\beta)&=\pi\\ \varphi+\alpha+(\pi-\varepsilon)&=\pi. \end{align*} Subtraindo membro a membro estas igualdades (e reorganizando ligeiramente o resultado) obtém-se \begin{equation} \varepsilon=\alpha+\beta-\delta. \end{equation} Mas $\alpha$ é o raio angular da sombra da Terra projetada na Lua; $\beta$ é o raio angular do Sol visto da Terra, que é muito aproximadamente igual ao raio angular da Lua visto da Terra; $\delta$ é o raio angular da Terra vista do Sol; como este está muito afastado, este ângulo é muito menor que os restantes e pode por isso ser desprezado; por fim, $\varepsilon$ é o raio angular da Terra vista da Lua. Assim, \begin{align*} \varepsilon&=\frac{R_\text{T}}{d_{TL}};& \alpha&=\frac{R_\text{sombra}}{d_{TL}};& \alpha&=\frac{R_\text{Lua}}{d_{TL}}& \delta&\simeq0. \end{align*} Substituindo na eq. (2) resulta \begin{equation*} R_T=R_\text{Lua}+R_\text{sombra}, \end{equation*} ou seja, \[ \frac{R_T}{R_\text{Lua}}=1+\frac{R_\text{sombra}}{R_\text{Lua}}. \] Por fim, substituindo aqui o valor apresentado na eq. (1), obtém-se \[ \frac{R_T}{R_\text{Lua}}=3,\!50\pm0,\!12, \] Já muito próximo do valor atualmente aceite de 3,6710.

Aristarco de Samos

O método 2 foi inventado pelo filósofo da antiguidade clássica Aristarco de Samos, que viveu entre 310 e 230 aC. Aristarco foi também o primeiro a propor a hipótese heliocêntrica, 1700 anos antes de Copérnico. Infelizmente, esta teoria não foi adotada por Aristóteles e, talvez por isso, não foi incorporada na doutrina cristã medieval, ficando mais ou menos esquecida, até Copérnico e Galileu.
Outra coisa interessante: para Aristarco, há 2200 anos, era um dado adquirido que a Terra é redonda. Este facto foi estabelecido por Pitágoras, 300 anos antes do tempo de Aristarco. Portanto, da próxima vez que ouvir algum comentador ou jornalista dizer que Cristóvão Colombo ou Fernão Magalhães mostraram que a Terra não era plana,... Bem, nessa altura já toda a gente instruída o sabia. Há muitos séculos!

Geogebra

Como se medem os raios do disco lunar e da linha de sombra com o GeoGebra? Com o GeoGebra a correr, arrasta-se o ficheiro com a foto da Lua para dentro do área de trabalho do GeoGebra. Uma das operações geométricas possíveis com o GeoGebra é a definição de uma circunferência que passa por três pontos dados. Esta função está acessível selecionando a operação no menu das operações com círculos (). Depois de ativar esta função, marque três pontos na periferia do disco lunar e outros três pontos sobre a linha de sombra. Define assim dois círculos, cujos parâmetros aparecem na zona algébrica (à esquerda na janela GeoGebra). A imagem em baixo ilustra os meus resultados (dei-me ao trabalho de acrescentar cor, só para se ver melhor)
Do lado esquerdo, nas linhas marcadas com uma bolinha verde e uma vermelha, são apresentadas as equações das duas circunferências. No lado direito destas equações aparece o quadrado do raio de cada uma. Assim, para esta figura em particular, temos \[ \frac{R_\text{sombra}}{R_\text{Lua}}\simeq\sqrt{\frac{49,\!89}{8,\!09}}=2,\!48. \]

Bibliografia

Thomas Heat, "Aristarchus of Samos", Elibron Classsics (2007). Reimpressão de uma edição original da Clarendon Press, Oxford (1913)

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